Resumindo & Praticando

Todos nos deparamos, diariamente, com notícias sobre novos estudos ou temas interessantes que chamam a nossa atenção. E o que fazemos? Vamos procurar esses artigos para ler.  Mas se és como eu e tens uma pasta no ambiente de trabalho com artigos para ler e a pilha está sempre a crescer mas tu não leste nem aprendeste rigorosamente nada, então estás no sítio certo. Aqui pretendo pegar em artigos científicos e efetivamente ler e perceber o que podemos levar para a nossa prática clínica. 

Esta é a minha forma de combater a procrastinação. Juntem-se a mim, vamos estudar e evoluir juntos.

Capa resumindo & praticando

“Riscos reprodutivos ocupacionais para cirurgiões nos blocos operatórios. Uma revisão.”

Anderson, M. Goldman, R. JAMA Surgery, 2020.

JAMA Surg. doi: 10.1001/jamasurg.2019.5420

[ Esta foi a minha primeira escolha após ver a notícia sobre a publicação do artigo no Journal of American Medical Association, partilhado por uma colega em que se revelava algo apreensiva. Nem precisamos ler a notícia para saber que o nosso dia-a-dia não é de todo o mais adequado para qualquer profissional com muitas horas de trabalho, quase sempre em pé, em esforço físico, em contacto com produtos tóxicos, radiação, com riscos de sermos mordidos ou arranhados e até levar uma bactéria multiressistente para casa. Agora imaginem-se grávidas!

Mas o que podemos fazer para melhorar esta situação? A resposta a isto está no artigo, temos de o ler. ]

Um questionário realizado a 1021 cirurgiãs de medicina nos EUA, mostrou que a sua taxa de complicações na gravidez é mais do dobro (35,3%) do que a população geral (14,5%). Estes resultados foram o ponto de partida para a investigação levada a cabo por Anderson e Goldman

Existem riscos que estão presentes nos blocos operatórios e que podem estar associados a estes achados. São eles:

  1. Radiação;
  2. Gases anestésicos;
  3. Fumos presentes na cirurgia;
  4. Condições de trabalho;
  5. Lesões por materiais perfurantes.

1. Radiação

É consensual afirmar que os riscos fetais são insignificantes em doses de radiação inferiores a 50 mSv. Apesar deste risco ser reduzido, não deve ser desprezado. Em contexto cirúrgico, ao usarmos a tomografia axial, a fluoroscopia ou outro aparelho que emita radiação, os potenciais resultados reprodutivos esperados pela exposição são:

  • Morte fetal entre as 0-2 semanas, numa dose limiar estimada entre 50-100 mSv;
  • Anomalias congénitas e restrições no desenvolvimento entre as 2-8 semanas, numa dose limiar estimada entre 200-250 mSv;
  • Efeitos cognitivos e microcefalia entre as 8-25 semanas, numa dose limiar estimada 60-310 mSv;
  • Aumento do risco de cancro infantil, este não necessita de uma dose limiar para poder ter consequências.

Os autores notam que existe pouca compreensão sobre a exposição à radiação pelos profissionais de saúde e os riscos que isso representa. Esta falta de conhecimento leva à falta de participação nas atividades pelas grávidas, e este não é o caminho. 

As clínicas e hospitais precisam de ser responsáveis e ativas na criação de ambientes de trabalho seguros e harmoniosos. Para isso precisam de facultar informação, possuir medidas de controlo e ter a capacidade de monitorizar a exposição à radiação dos seus profissionais. 

É muito importante ter noção do princípio de ALARA para todas as etapas do uso médico da radiação: “As Low As Reasonable Achievable”. Significa que a nossa exposição deve ser tão baixa quanto razoavelmente exequível, cujo objetivo é minimizar a exposição desnecessária dos pacientes e dos executantes, sem comprometer o resultado final. Para isso temos de ter em consideração 3 fatores:

  1. Tempo de exposição. A dose de exposição de um paciente é diretamente proporcional ao tempo de exposição.
  2. Distância. A quantidade de radiação é inversamente proporcional ao quadrado da distância, ou seja, se a distância duplicar, a quantidade de radiação reduz para 1/4.
  3. Blindagem. Consistem nas barreiras de proteção, sejam ela as paredes, portas ou janelas, bem como o vestuário de proteção, os aventais, colares de tiróide, luvas e óculos.

A média anual de radiação de cada pessoa é 6,2 mSv, este valor incluí a radiação natural, como a cósmica que interage com a atmosfera e a interna proveniente do núcleo terrestre e que nós contactamos através da pressão do ar e fendas no solo, e a radiação artificial, sendo a medicina responsável por 98% desta radiação.

A dose de radiação que a Comissão Internacional de Proteção Radiológica recomenda após as profissionais declarem a sua gravidez, é 1 mSv durante toda a gestação. Não podemos mesmo desprezar este risco.

2. Gases Anestésicos

Estes gases são administrados ao doente (humano ou animal) por inalação, podendo ser libertados na atmosfera do ambiente de trabalho. Esta situação representa um risco de exposição para os trabalhadores, especialmente em blocos operatórios sem ventilação ou equipamento de extração dos gases anestésicos.

Aqui estão incluídas 2 classes de químicos, o óxido nitroso e os agentes halogenados (ex: isoflurano e sevoflurano). Estes químicos foram identificados há mais de 50 anos como sendo um risco reprodutivo ocupacional, no entanto as diretrizes foram desenvolvidas não para evitar os problemas reprodutivos, mas para impedir a diminuição cognitiva dos profissionais. 

Os riscos que estão associados à exposição a gases anestésicos são:

  • Diminuição da fertilidade; 
  • Aborto espontâneo;
  • Anomalias congénitas.

Os limites de exposição a gases anestésicos residuais no local de trabalho variam internacionalmente. Atualmente não existe nenhum estudo que avalie os efeitos tóxicos do isoflurano e do sevoflurano. Só prova a falta de evidencias científicas dos reais limites da nossa exposição aos gases anestésicos. 

Se não sabemos os limites, temos de fazer algo para minimizar este impacto na nossa prática clínica. Sistemas de exaustão e ventilação mostraram ser um grande contributo para diminuir a concentração dos gases anestésicos no bloco operatório. Sistemas de ventilação sob pressão ou ar condicionado de fluxo laminar, conseguem manter os níveis de óxido nitroso abaixo das 25 ppm e reduz igualmente os níveis dos agentes halogenados, o que é algo bastante interessante, se tivermos em consideração que uma anestesia ocorre a níveis acima das 12000 ppm de isoflurano. Está recomendada a realização de avaliações diárias ao equipamento anestésico e manutenções regulares por forma a minimizar fugas e mal-funcionamento. Devem ser adotadas técnicas anestésicas que evitem o desperdício dos gases, como por exemplo, evitar taxas elevadas de fluxo e minimizar as fugas. Por último, deverá se instituir um programa que faça a monitorização do nível dos gases atmosféricos no local de trabalho.

3. Fumos presentes na cirurgia

Os fumos cirúrgicos referem-se aos produtos criados pelas fontes de energia na sala de cirurgia como por exemplo o eletrocauterizador ou gases de produtos químicos utilizados. 

Nenhum estudo investigou diretamente a exposição dos fumos cirúrgicos e o risco reprodutivo mas, ao analisar os componentes do fumo cirúrgico, mostrou que existem riscos reprodutivos e são eles:

  • Baixo peso ao nascer e parto prematuro;
  • Defeitos congénitos, comprometimento cognitivo e infertilidade (tolueno);
  • Aumento do risco de leucemia infantil (benzeno).

Recomenda-se a instalação e manutenção de um sistema de ventilação, utilização de  aspiradores de fumo, minimizar a produção de fumo tanto quanto possível e considerar utilizar máscaras cirúrgicas com elevada capacidade de filtração. E, uma vez mais, sensibilizar os profissionais para o tema, quais os riscos e como se podem proteger.

4. Condições de trabalho

As condições de trabalho, que vemos frequentemente na área da saúde, foram propostas como tendo efeitos adversos na fertilidade e gravidez. Pode haver um risco maior de prematuridade para profissões com maior exigência física. Trabalhar longas horas (>40h/semana) pode levar a partos prematuros, aborto espontâneo e o bebé ser pequeno para a idade gestacional. Os turnos noturnos também podem levar a partos prematuros e aborto espontâneo.

Mais uma vez, as recomendações para reduzir a exposição a estes risco passam pela educação e sensibilização dos profissionais para esta problemática. E não basta avisar dos potenciais riscos, é necessário promover condições alternativas de trabalho para as profissionais grávidas, de forma a não limitar injustamente as suas funções.

5. Lesões por materiais perfurantes

O estudo demonstrou que os cirurgiões têm maior risco de ferimentos por materiais cortantes que os restantes profissionais de saúde, podendo ocorrer até 15% das cirurgias.

Um questionário a internos de medicina revelou que 99% já sofreu uma lesão, sendo a mais comum com a agulha do fio de sutura. Os riscos detetados tiveram em consideração as doenças que se podem transmitir entre pessoas, como a Hepatite B e C e o HIV. Apesar de em veterinária não corremos estes riscos não podemos desvalorizar as zoonoses e devemos aplicar de igual forma as recomendações para reduzir a exposição a este risco concreto.

As profissionais grávidas deverão usar 2 pares de luvas e agulhas de sutura rombas sempre que for possível. O uso de dispositivos cortantes com sistemas de segurança são uma mais valia na prática cirúrgica. E se houver exposição deverá ser dado aconselhamento e deve-se prescrever tratamento profilático, se for necessário.

Conclusões

As mensagens mais importantes que retiro deste artigo é que devemos procurar o máximo de conhecimento sobre os riscos que corremos no nosso local de trabalho. Se estivermos sensibilizados, conseguimos minimizar esses efeitos sem que isso afete as nossas rotinas laborais. 

Devemos exigir que as nossas entidades patronais apliquem as recomendações dadas pelas agências de segurança no trabalho.

E porque estamos a falar de riscos reprodutivos, devem-se criar programas de proteção à profissional grávida. Só desta forma conseguimos apoiar as mulheres em idade fértil e não estigmatizá-las.